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HEMORRAGIA GRAVE EM PACIENTE ANTICOAGULADO: QUANDO E COMO RETORNAR ANTICOAGULAÇÃO

AngioTC TAVI

A hemorragia grave é o evento adverso mais crítico entre aqueles pacientes com prescrição crônica de anticoagulante pleno. Por definição, trata-se dos casos de hemorragia intracraniana em geral e dos casos de hemorragia “maior” (repercussão hemodinâmica e/ou clínica) em outros sítios como o Trato Gastrointestinal (TGI), Trato Geniturinário e Trato Respiratório.

Dentre os eventos hemorrágicos, o mais temido é o sangramento intracraniano por traduzir-se potencialmente em alta morbi-mortalidade. Ele pode acontecer de forma espontânea através de um Acidente Vascular Encefálico hemorrágico (AVEh) ou de forma secundária a um Trauma Crânio Encefálico (TCE) por exemplo. Já os eventos hemorrágicos em TGI, experienciados por cerca de 5-15% dos pacientes em anticoagulação, são a mais comum complicação hemorrágica entre estes pacientes, apesar de menor morbi-mortalidade que os sangramentos intracranianos.

A população de maior incidência inclui os pacientes idosos (especialmente > 80 anos e/ou “frágeis”), hipertensos não compensados, portadores de diabetes, portadores de doença renal crônica, uso concomitante de antiplaquetários, alcoolismo/tabagismo e extensa microangiopatia cerebral à ressonância magnética (RM).

De um modo geral, antes mesmo de chegarmos a pensar no momento ideal de reintrodução do anticoagulante (se assim for indicado), estamos focados em vencer a fase aguda da complicação hemorrágica e salvar a vida do paciente. Isso inclui estabilizar sinais vitais, suportes ventilatórios e/ou hemodinâmicos se necessários e até mesmo intervenções (cirúrgicas, escopias etc) diretas. Além disso, reposições de hemocomponentes e/ou hemoderivados (concentrado de hemácias, plasma, complexos protrombínicos ativados etc) podem se fazer necessários, e claro, a reversão específica do anticoagulante em uso. Neste tópico temos os fármacos direcionados, como a Vitamina K para a reversão da Varfarina, a Protamina para reversão da Heparina, Idarucizumabe para o Dabigatran e o Andexanet alfa para o Rivaroxaban e Apixaban.

Passado esse cenário crítico, chegamos ao dilema que é tema desta revisão. Voltar ou não a anticoagulação?? Se voltar, quando voltar ?? Qual fármaco usar ?? Não encontramos essas respostas de forma clara e direta em nenhum Guideline. Isto porque trata-se de um conteúdo sensível para produção de Ensaios Clínicos e por isso ainda alicerçado em evidências com certas limitações. Fomos então atrás dessas evidências. Nossa revisão bibliográfica trouxe-nos a contemplar e analisar inúmeras publicações, inclusive metanálises entre estas, mas, todas com metodologia de caráter Observacional, como Registros retrospectivos transversais e Coortes retrospectivos ou prospectivos.

Bem, com algumas respostas em mãos, ainda que baseadas em resultados com limitações metodológicas, achamos mais didático dividir os casos, como visto em algumas das nossas referências, de acordo com o tipo e topografia do evento hemorrágico e/ou perfil de indicação de anticoagulação prévia do paciente.

Então vamos Lá. Vamos aqui tratar do sangramento com maior potencial de letalidade e o de maior incidência. Temos o subgrupo de paciente anticoagulado que evolui com AVEh, temos aqueles anticoagulados que evoluem com hemorragia intracraniana secundária a um TCE e temos também o paciente anticoagulado com sangramento maior no TGI. Quanto ao perfil da indicação prévia do anticoagulante, vamos focar nos pacientes com indicação de prevenção (primária ou secundária) de eventos tromboembólicos arteriais por cardiopatias, como os portadores de FA e/ou portadores de valvopatias/próteses valvares. Essa prevenção pode ter sido indicada para um grupo de risco moderado/alto (FA com CHADSVASC 2-4 sem AVEi prévio), risco alto (valva mecânica sem FA, valva biológica com FA, estenose mitral moderada a grave com FA, FA com CHADSVASC ≥ 4 e/ou AVEi embólico prévio) ou risco muito alto de evento tromboembólico (valva mecânica com FA, valva mecânica mitral independente de FA ou prótese cage-ball)  

1) Começamos pelo cenário de maior tensão. Paciente portador de válvula mecânica, anticoagulado, evoluindo com AVEh, como e quando retornar a anticoagulação ?? O reinício da anticoagulação em menos de 2 semanas após o AVEh foi associado, no geral, a aumento significativo de complicações hemorrágicas. A balança de custo benefício “líquido” parece ser claramente favorável para o reinício após 2 semanas (14 dias) para esse perfil de pacientes com alto risco tromboembólico, mas para o subgrupo de muito alto risco (valvula mecânica e com FA) o benefício aparece em ponto mais precoce, de 6 dias.

Fonte: European Heart Journal(2018),1–15, doi:10.1093/eurheartj/ehy056

2) Segundo cenário, paciente portador de FA, CHADSVASC ≥ 2, anticoagulado, evoluindo com AVEh, como e quando retornar a anticoagulação ?? Nesse perfil de paciente, principalmente entre aqueles com CHADSVASC entre 2-4 sem AVEi prévio (risco moderado/alto), é extremamente válido uma minunciosa avaliação subjetiva (status funcional atual, prognóstico geral, tamanho do evento hemorrágico, riscos inerentes a fatores externos de exposição daquele paciente) e avaliação objetiva (HAS BLED etc) para definir sobre retorno ou  não da anticoagulação. De um modo geral as evidências “frias” são favoráveis ao retorno da anticoagulação. Mas quando se trata do momento ideal, os resultados de risco-benefício são heterogêneos, mas existe talvez uma unanimidade na literatura em evitar o retorno precoce nas primeiras 2 semanas devido altas taxas de complicações hemorrágicas nesse período, e que após 6-8 semanas o risco hemorrágico é definitivamente suplantado pela benefício protetivo dos eventos tromboembólicos, como claramente encontrado nos resultados de uma grande coorte sueca de pouco mais de 4 anos atrás, corroborada por um outro grande trabalho Observacional coreano publicado já em 2022. Para esse intervalo de após 2 semanas e antes da 6° semana está uma “zona cinzenta” onde os resultados dos trabalhos são conflitantes. Nesse intervalo, em seu limite inferior de 2-4 semanas algumas subanálises mostram benefício para o subgrupo de muito alto risco e o seu limite superior de 4-6 semanas parece bem tolerado para o grupo de alto risco. Em resumo, prioritariamente não reiniciar antes de 2 semanas e preferencialmente após 6-8 semanas, podendo usar o intervalo de 2-6 semanas do evento hemorrágico índice para reiniciar o anticoagulante em pacientes selecionados de alto ou muito alto risco tromboembólico. Alguns trabalhos isolados avaliaram não só o resultado da balança líquida dos eventos de reincidência/complicações hemorrágicos contra os isquêmicos e status neurológico funcional, como também avaliaram desfecho de mortalidade e encontraram evidências em favor do reinício da anticoagulação.

Fonte: Pennlert J, Overholser R, Asplund K, Carlberg B, Van Rompaye B, Wiklund PG, Eriksson M. Optimal Timing of Anticoagulant Treatment After Intracerebral Hemorrhage in Patients With Atrial Fibrillation. Stroke. 2017 Feb;48(2):314-320. doi: 10.1161/STROKEAHA.116.014643. Epub 2016 Dec 20. PMID: 27999135.
Fonte: Pennlert J, Overholser R, Asplund K, Carlberg B, Van Rompaye B, Wiklund PG, Eriksson M. Optimal Timing of Anticoagulant Treatment After Intracerebral Hemorrhage in Patients With Atrial Fibrillation. Stroke. 2017 Feb;48(2):314-320. doi: 10.1161/STROKEAHA.116.014643. Epub 2016 Dec 20. PMID: 27999135.

3) Agora num 3° cenário, paciente anticoagulado, evoluindo com hemorragia intracraniana pós TCE, como e quando retornar a anticoagulação ?? Nesta categoria, ainda que também sem evidências baseadas em Ensaios Clínicos randomizados, a prática é quase sempre de reiniciar anticoagulação “assim que possível”. Neste caso, os danos cerebrais muitas vezes vão além da hemorragia e por isso outros fatores (principalmente cirúrgicos) são considerados. Mas, de antemão, temos resultados que no geral favorecem a indicação e segurança de retorno da anticoagulção após 2 semanas (14 dias), claro pesando-se individualizações de cada caso.

Fonte: King B, et al. Restarting and timing of oral anticoagulation after traumatic intracranial hemorrhage: a review and summary of ongoing and planned prospective randomized clinical trials.

4) Mudando a topografia, entramos no 4° cenário com sangramentos maiores do TGI, o que fazer ?? A literatura disponível favorece a retomada da terapia anticoagulante como “plano padrão”. Depois de considerar os fatores relacionados ao evento sangrante índice e o risco tromboembólico e comorbidades, a decisão de aceitar ou modificar o plano padrão pode ser tomada e compartilhada com a colaboração de outros membros da equipe, o paciente e familiares. Embora sejam necessárias informações adicionais em relação ao momento ideal, evidências mostram que o tempo de 14 dias (2 semanas) para sangramentos maiores do TGI é o de melhor equilíbrio entre as variáveis de risco de recorrência do sangramento, risco tromboembólicos e mortalidade.

 

5) Qual Anticoagulante usar ?? As evidências comparativas se fazem mais comumente entre os DOACs e a Varfarina e existe um tendência para menor recorrência de sangramentos entre os primeiros em comparação ao antagonista de vitamina K. Mas, claro que isso não suplanta a indicação de anticoagulação oral exclusiva (até o momento) com Varfarina para alguns perfis, como os portadores de válvulas mecânicas, e outras indicações pontuais preferenciais para a Varfarina, como trombos cavitários por exemplo.

 

Lembrar que para situações especiais e individualizadas de alto ou muito alto risco isquêmico, mas com muito alto risco de ressangramento, contamos com recursos que promovem também razoável grau de proteção sem afetar diretamente o risco hemorrágico,  como por exemplo exclusão de apêndice atrial esquerdo em casos de FA com CHADSVASC elevado, filtros de veia cava em casos de TEV etc.

 

A despeito da falta de evidênicas baseadas em grandes Ensaios Clínicos, de acordo com todos esses extensos dados observacionais, no geral, a retomada do ACO após hemorragia grave (maior) parece não só segura como benéfica, por isso entendida como “plano padrão”. Mas, a tomada de decisão individualizada deve sempre ser a regra e medida primordial para todos os casos, pesando o status basal funcional do paciente e os riscos tromboembólicos versus hemorrágicos.

 

Não temos independência, muito menos autonomia, para elencar e traduzir o poder das evidências trazidas nesta revisão em “graus de recomendação”, mas, talvez em breve, possamos assistir uma junta de especialistas e/ou entidades médicas com tal autoridade sintetizar esses dados atuais em um nível B ou C de evidência (já que não baseia-se em nenhum grande ensaio ou metanálise robusta e sim em várias publicações Observacionais) e indicar algum grau de recomendação específica

 

Obs: Ainda existe um arsenal enorme de situações específicas, não tratadas aqui, dentro da temática de retomada da anticoagulação pós complicação hemorrágica e seu momento ideal. Todas estas também fora de qualquer Guideline ou recomendação formal de alguma grande entidade médica mundial. Por exemplo, os eventos de sangramentos em Trato Geniturinário ou Respiratório (menos frequentes que os de TGI) ou os eventos hemorrágicos relacionados a pacientes em prevenção secundária por TEV. Outra especificidade muito importante são os pacientes oncológicos anticoagulados por TEV que vêem a ter sangramento maior, para os quais devemos individualizar inúmeros fatores adicionais (evento prévio de TEV que justificou a anticoagulação estava relacionado ou não com acessos venosos implantados ?? Doença oncológica ainda ativa ou já tratada/curada, etc). Também podemos enumerar a celeuma provocada no processo decisório quando trata-se de pacientes renais crônicos, além de nuances como os casos de perdas sanguíneas em anticoagulados devido trombos intracavitários e de outras diversas situações e particularidades que não são temas desta publicação, mas que igualmente exigem conhecimento das melhores evidências, individualização criteriosa em grande parte das vezes e sempre (que possível) o compartilhamento da decisão com o paciente e/ou familiares.

Referências: 

1.    Joji B. Kuramatsu et al. Management of therapeutic anticoagulation in patients with intracerebral haemorrhage and mechanical heart valves. European Heart Journal (2018) 0, 1–15.

2.    Renato Delascio Lopes et al. MANAGEMENT OF ANTITHROMBOTIC THERAPY IN STROKE PATIENTS: WHERE DO WE STAND IN 2018? Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2018;28(3):267-75.

3.    Yan-guang Li & Gregory Y. H. Lip. Anticoagulation Resumption After Intracerebral Hemorrhage. Current Atherosclerosis Reports (2018).

4.    Santosh B. Murthy et al. Restarting Anticoagulant Therapy After Intracranial Hemorrhage A Systematic Review and Meta-Analysis. Stroke, June 2017

5.    Sembill et al. Resumption of oral anticoagulation after spontaneous intracerebral hemorrhage. Neurological Research and Practice (2019) 1:12

6.    D. Poli, et al. Anticoagulation resumption after intracranial hemorrhage in patients treated with VKA and DOACs. European Journal of Internal Medicine 80 (2020) 73–77

7.    J.Y. Moon et al. Restarting anticoagulant therapy after intracranial hemorrhage in patients with atrial fibrillation: A nationwide retrospective cohort study. IJC Heart & Vasculature 40 (2022) 101037

8.    Johanna Pennlert, MD et al. Optimal Timing of Anticoagulant Treatment After Intracerebral Hemorrhage in Patients With Atrial Fibrillation. Stroke February 2017

9.    King B, et al. Restarting and timing of oral anticoagulation after traumatic intracranial hemorrhage: a review and summary of ongoing and planned prospective randomized clinical trials. Trauma Surg Acute Care Open 2020

10.  Daniel M. Witt. What to do after the bleed: resuming anticoagulation after major bleeding. American Society of Hematology. Hematology 2016

11.  Christensen et al. European Stroke Organisation Guideline on Reversal of Oral Anticoagulants in Acute Intracerebral Haemorrhage. European Stroke Journal 0(0) 1–13, 2019

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